domingo, 28 de junho de 2009

Tirando casquinha

Eu notei, ela é explosiva. Carrega quilos de dinamite na barriga. Te manda à merda por um simples detalhe que passaria despercebido, não fosse ela tão petulante e orgulhosa. Às vezes lembra do Pequeno Príncipe e se acorda caçoando, dando risada alta. Nesses dias, envolve de suco gástrico qualquer coisa que não combina. Sai do quarto com seu óculos policial, e num clima blasé mostra para todos o quanto é independente e sozinha. E está bom assim. Mas não se agüenta tão séria, e logo escapa algum comentário idiota. É uma tiradora de sarro – sim, sarcasmo gástrico. Agora, se você, um dia, tiver o privilégio de escutar de perto o canto que tem os olhos dessa menina... terá cravado pra sempre em sua memória um doce relicário de melodias cor-de-rosa, com primaveras sorrindo e promessas de um romântico tempo de amor, daqueles antigos. E como sonha essa guria! Quer engolir as nuvens, sustentar o mundo numa tragada. Os sonhos crescem e se enroscam nos caracóis de seus cabelos embaraçados. Ela se debate, acende um cigarro, vai livre como a fumaça, se desmancha ao vento. Está apenas sendo. E por pouco não segura essa leveza passageira. É demasiadamente de carne e osso, não acha posição no sofá. Quer ser cazuziana. Mas ainda não saiu do casulo, está sentada na janela, aprendendo a voar. Eu notei quando toquei seu íntimo. É de casca grossa, por ser tão delicada. Então fugiu sem olhar pra trás...

quinta-feira, 25 de junho de 2009

Ouro de mina

Ficou revirando entre dias, ruminando na barriga, esôfago. Empurrava pela garganta, enchia os brônquios e dissipava grave. Subia e descia naquela sensação de vômito. Às vezes saia até som, contração. Mas não saia. Vazio. Oco de falta abafada, suando frio. E já se passavam dias. A coisa estava ficando insuportável. Até que veio. Toda orgulhosa, se achando obra. Daí então pensei: ‘ninguém merece ver esse troço’ - e puxei a descarga. Estava leve outra vez. O vento retomou seu velho hábito de passar jovem e fazer carinho. Mas durou pouco. Eis que a campainha toca, o coração dispara. Abro a porta, ninguém. Volto para casa, encontro a geladeira aberta e gente que se disfarça no sofá. Fico sem ter onde cair morto. Meu estômago revira, ando de um lado para o outro. Não desocupam o banheiro. Perdi minha cama. A coisa ficou aguda. Do que essa obra tanto reclama? Acho que nasci com a sina do desassossego.

“Quiçá, um dia, a fúria desse front virá lapidar o sonho até gerar o som”

terça-feira, 23 de junho de 2009

Sob o signo de seu nome

Pois quando fugi
(ou quando me expeliu pra noite fria)
soube que nasci embriagado,
que estava condenado.

Por isso, os passos cruzados e o sangue de vinho,
a alma colorida e a mediocridade vomitada na mesa.
O esquecimento e a alegria. A mentira. O desejo.

Sim,
no armário de coisas antigas
os poemas que me cravastes são dados por perdidos.
Mas ressurgem, letra por letra,
quando sua figura me assombra,
até formarem estrofes, imagens, novenas.

E enquanto invento seu nome, me doem os lábios,
me sagram as coxas, me cora a face –
um fio de prazer brota de dentro dos ossos, e
espalha-se sob seu domínio.

Hipnotizado,
me reencaminho ao eterno ninho,
onde o sonho me tira o sono,
e inocentemente brinco.


Sei que você não existe.

terça-feira, 16 de junho de 2009

"Se você for
exatamente como imagino,
igualzinho aos meus sonhos,
eu vou embora.
Detesto desmancha prazeres"

Marta Medeiros

quinta-feira, 11 de junho de 2009

Deveras sente

Deveriam eliminar os corações poetas. Deveriam instituir algum respeito, algum segredo, algum lugar sagrado – lembrar da calma oceânica que periga estourar os tímpanos ou dos jardins e flores que podem derreter os miolos – que se volte contra eles e os revele criminosos. Caça a esses fingidores! Deveriam usar o silêncio, esse barulho mentiroso de sentimentos.
Ensinássemos pisar sobre os corações até que eles virassem uvas, e nós nos faríamos de vinho. Sangue sussurrando verbos fermentados. Chupar a morte para depois então comê-la e ser comido. Lamber cada gota que escapar da vida, e devanear abrigos. Saber-se extremamente sozinho e escolher o lado errado. Quebrar as pernas e pedir cuidado.
Coração poeta veio ao mundo para ser violento e violentado nesse teatro do amor, seu gosto por inventar histórias e sofrer. Suas máscaras que criam raízes, seu desejo doente em seduzir, sua inocência perversa cantando ‘água de beber, camará’. Suas vítimas. Deveriam acabar esquartejados, expostos em praça pública, denunciados em horário nobre, ‘são falsos, vergonhosos; eliminem esses contraventores!’.
Eu bem sei o estrago desses monstrinhos sonhadores, são exageradamente sinceros, vivem conflitando. Adulteros, infectam nosso cortex com açucar sal e pimenta. Deveríamos prender, enjaular esses corações que batem punheta, eles e seus amadores. Todos uns loucos sado-masoquistas! Brincam com seus donos. Destruam esses tradutores! Inauguremos uma nova guerra!
Posso até imaginar, a cidade se agitando, as mocinhas se enfeitando, as mães de preto, aquele vento vazio varrendo a rua, a molecada correndo atrasada e gritando, ‘acharam mais um coração fingido’.
Então eu, todo coração, ciente do meu mau, caminharia até a praça, e de braços abertos me entregaria em versos, terminado com um ‘por favor, me livrem de tanta fantasia, sou um pobre escravo da poesia’. Porém os sensores, coerentes com meu mau risonho, mal me ouviriam. Muito menos se preocupariam com meu coração. Eu passaria despercebido. Então gritaria, e nada. Nem Pessoa nem Quintana nem nada. Minha dor não pode ser sentida. Não posso pedir socorro. Sou uma mentira.

segunda-feira, 8 de junho de 2009

Lembranças de Maringá

Maringá,
fica seu aspecto transitório
e eu congelado buscando sol.
Havia me esquecido do seu frio.

Não sei de mim,
nada sei de mim.

Acho que ouvi sua voz na sala escura,
pouco depois de levá-la ao terraço,
mas tive medo. Depois voltei ao corredor,
e ainda escorre o mesmo cheiro de musgo.

Há blocos de salas escuras onde eu não entro.

segunda-feira, 1 de junho de 2009

Sobre a verdade: cercando... algum rebanho?

A verdade tem pé na fé. Um tipo de barquinho furado de difícil controle, mas necessário para permanecer sobre as águas mais profundas enquanto afundamos deliciosamente. Um equilíbrio impossível, mas ‘mais fácil que trepar em pé na rede’, como diria um antigo professor meu.

É sempre noite em alguns lugares do oceano, águas onde os olhos são postos na lua. Estrelas descem para nadar junto e ficam nos seduzindo, contando segredos que só escutam os que depositam fé. Nisso abrem novos caminhos. É como se fosse um foco da atenção. Quase inocente, indevido.

Verdade é uma palavra. Palavra é uma tentativa de representação. Representação é uma tentativa de fazer presente (e isso é sagrado). Memória permite quebrar a cabeça e juntar representações. Verdade é como um salto qualitativo na memória. É uma lembrança. Mas tem haver também com aproximação da totalidade, abstração, negativo. Se não fosse palavra, seria independente do indivíduo. Verdade não existe.

Por outro lado, verdade tem haver com dia. Então é uma areia quente e fina, de atmosfera direta de luz. Deserto bíblico de tão real, não de mar canto e sereia. Alguém prudente poderia pensar agora: ‘que viagem’, querendo desmoronar tudo. Enquanto, pelas costas, alguém com a faca: ‘que postura mais autoritária do pensamento, inventando um mundo que não existe!’, e uma mocinha de patins passaria sorrindo a morte da verdade. ‘Estamos livres!’.

Alucino o fim da verdade, a morte do tempo. Mas isso pressuporia sua realização. Ou seja, olhos fixos para reparar o monstro. E não simplesmente instituir que o monstro não existe. Ele está para todos nós, cotidianamente. Tenho medo desse deserto sem sol, seus sem números de miragens, de onde a palavra se abre.

Verdade é uma palavra-alucinação (tudo bem... toda palavra alucina). Do deserto ela brinca de teatros, simulados e gêneros. Mas simplesmente é. Por isso dizer que a verdade existe antes da palavra, diria até – e numa altura dessas vocês já não devem me levar tão a sério – antes do humano. Por isso, dentre outras coisas, ela às vezes aparece autoritária. Pede para entrar só pra fingir considerações. E quando encontra alguma voz que a anuncie, se revela dona do todo. Podem até haver outras sugestões, mas é ela quem determina.

Relativizar, fazer relações, buscar o novo, reparar o diferente – ótimo! E a gente vai construindo como se fosse um castelo de parâmetros, no mundo humano, onde o sol e a lua são postos em movimento. A verdade é, quase, de mundo parado: alucinado e sagrado. Mas será que por isso mereça ser banida do nosso linguajar cientifico? Ser caçoada em congressos?

Quase todos sabemos que verdade é uma mentira. Mas não deveríamos deixar a criança vazar com a água do banho – ainda mais se a criança ainda nem nasceu ou nasceu precoce. Carece cuidado, reflexão: se não pensamos em verdade, falamos em mentira? Espelho, sim e não, certo e errado, ... Daí talvez alguém atualizado dissesse: ‘é preciso um novo vocabulário para entender o mundo pós-moderno’, se referindo (mesmo sem saber) ironicamente ao meu barquinho furado. No que eu, humildemente, maturaria, ‘estão colocando o carro na frente dos bois’, e resmungaria ‘pós-moderno...’ em algum suspiro de quem já ta cansado.

Ato final: cena única.
Uma mulher de grande sabedoria dizendo sobre o traumático, sobre a impossibilidade de digerir, comunicar. E então vomitava e tornava a comer tudo, até que fizesse algum sentido. Frágil, de cartas e cifras. Fazia tudo isso sem tirar da cara um semblante de paz, e nos sorria.